sábado, 17 de junho de 2017

A ÁGUA, SEMPRE.


Por vezes, ele tinha a sensação de ser
levado por um rio de águas frias.
“Penso naquela mulher como um
campo incendiado”, disse-me.
A mim, teceu um minucioso cenário do amor:
de Romeu e Julieta a Capitu e Bentinho,
de Dante e Beatriz a Penélope e Ulisses.
Recitou versos de Neruda, de Florbela Espanca,
de João de Deus...
Sabia das peripécias literárias do amor
como poucos. Mas, do seu, disse-me que
“foi como ter pulado um Carnaval inútil.”
Era um homem acostumado aos gritos
e à mansidão das horas.
Há muitos anos que decidira não
olhar para o sol quando nascia e
quando se punha.
Por um mísero momento, Oswaldo
contemplou a paisagem com o olhar
que mais parecia o de um deus sem trono.
Fixou os olhos negros e eternamente
lacrimosos como quem avistara uma
mão que acena numa luva de cetim.
Então, conseguiu olhar para as próprias mãos
tal os que se olham no espelho.
(as concavidades vazias de seus olhos)
Já não suportava mais o excesso de
palavras que não conseguiu dizer por
toda a vida e que agora resolveram
corroer sua cabeça.
Transbordou com uma caneta
num guardanapo amarelado
feito uma maré no escuro:
“Um homem tem que buscar alguma coisa,
nem que seja a loucura de querer
o impossível”.
Esqueceu os cigarros (e o papel)
no banco do passeio.

Do livro inédito (SEMÂNTICA DAS AVES), de Nathan Sousa.


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